terça-feira, 28 de outubro de 2008

Lendo Dostoiévski

Apesar do atropelo de tarefas que o curso de Direito me impõe ainda acho tempo para meus exercícios literários.

Primeiro, é interessante esclarecer que uma grande obra da literatura universal não deve ser apenas lida e interpretada, mas sim digerida, deve entrar em simbiose com a alma do leitor. Platão nos diz que o pleno conhecimento de alguma coisa pressupõe uma ascese erótica, um apego, mesmo que momentâneo, com o objeto do conhecer e é assim que se sucede com a literatura. Quando lemos uma obra desse porte, devemos desconstruir todos os nossos preconceitos e nos desfazer do peso de nossa cultura (e não me venham falar de Gadamer!), para assim achar o caminho ao nirvana intelectual que nos deixa livres para contemplar a magnitude dos grandes mestres. Que os juízos de valor venham depois da contemplação, pois eles só servem para alimentar-mos nosso necessário maniqueísmo intelectual. O contemplar é a essência de toda e qualquer arte, o resto é acessório.



Estou lendo Dostoiévski, mais precisamente a "Recordação da Casa dos Mortos". Leitura difícil, não por sua linguagem, pois o escritor russo é um dos homens mais claros e precisos desse ramo, mas pelo peso humano que traz entranhada em suas páginas. Tudo nessa obra cheira ao ser-humano e, como não deveria ser diferente, cheira mal. O presídio desenhado por Dostoiévski é um corte na realidade de nós mesmos, é um espelho sem os adornos que expõe a miséria de ser humano. Nossos sentimentos mais sórdidos e nossas ambições mais recônditas são corporificados naqueles presos, que são a exposição de nossas verdadeiras feições, sem a maquilagem do urbanismo e da civilidade.

Ainda estou nas primeiras páginas da "Casa dos Mortos" e não me faltam motivos para me surpreender. A carga de realidade é tão grande que dá para ouvir o soluçar dos presos após uma seção de açoitamento, que dá para sentir a podridão das casernas, que dá para ver nos olhos de cada um a maldade, a falsidade e a frieza. Talvez seu tom autobiográfico tenha lhe dado mais brilho, pois nem em "Crime e Castigo", sua obra mais badalada, conseguimos sentir o estio de verossimilhança carregado nessas "Recordações".

A experiência da leitura de Dostoiévski é única e irrepetível, o que posso fazer é traçar impressões tímidas e inexatas. Não nego a beleza de romancistas como Flaubert, Eça de Queirós e, trazendo pra nossa terrinha, Machado de Assis, mas é que apenas em Dostoiévski (e talvez em Kafka) consegui ver com transparência os caminhos mais desconexos de nosso espírito, os liames tênues entre a civilidade e a barbárie e a afirmação da tese de Schopenhauer de que a vontade humana, guiada por seus desejos mais primitivos, é guia de nossa existência.


Obra mais que recomendada.

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